Ilegal, e daí? Mesmo regulamentada, convivência entre pedestres, motoristas e ciclistas é caótica
As mais simples sinalizações de trânsito valem mais do que mil palavras. No vermelho, pare; no verde, siga. Faixas brancas paralelas sobre o asfalto indicam que, ali, a prioridade é do pedestre. Nas placas, a imagem cortada praticamente grita “é proibido” — seja estacionar, andar num determinado sentido, transitar de moto etc. Por que, então, tanta gente desrespeita regras que qualquer criança é capaz de reconhecer? Na luta diária por espaço e respeito, pedestres, motoristas e ciclistas travam batalha renhida no trânsito carioca. Essa desarmonia permanente resulta em acidentes, infrações e desentendimentos que se espalham por diversos pontos da cidade.
Douglas de Nogueira, estudante de 30 anos, vive essa realidade todos os dias. Ele mora no Leme, trabalha em Copacabana, e percorre a pé um trajeto de cerca de 30 minutos repleto de obstáculos.
— Está tudo errado. As pessoas não respeitam o tempo e o espaço do outro — desabafa Douglas, que precisa desviar dos carros que param a todo momento em cima da faixa no cruzamento da Rua Princesa Isabel com a Avenida Atlântica.
O artesão Paulo Silva, de 45 anos, trabalhava na orla de Copacabana, mas há seis meses decidiu trocar de ponto, já que a antiga localização atrapalhava a passagem dos banhistas por tomar parte da calçada. Instalado perto de um cruzamento no bairro, Paulo lembra o atropelamento de uma mulher que testemunhou no início do mês:
— Ela foi atingida em cima da faixa com o sinal fechado, por uma moto que fugiu em seguida. Isso acontece direto. Os ônibus também param nas faixas, e fica impossível atravessar com segurança. Infelizmente, é uma triste realidade com a qual temos que lidar — lamenta.
Todos ‘sempre correndo’
A empresária Lúcia Gonçalves, moradora da Zona Sul há mais de 30 anos, conta que foi atropelada por bicicletas três vezes só este ano.
— Da última vez, eu estava errada, caminhava onde não devia. Mas, nas outras duas, estava na faixa, e entregadores passaram com pressa e me derrubaram. Parece que todo mundo está sempre correndo — diz ela.
Enquete feita pelo GLOBO na sexta-feira passada mostra que, para o carioca, os maiores incômodos de quem circula pela cidade são justamente as bandalhas feitas por ciclistas e motociclistas. Os desatinos dos pilotos sobre duas rodas, que andam por calçadas e na contramão, sem parar nos sinais, foram o principal transtorno apontado por 42,55% dos consultados.
O ranking continua com lixo jogado na rua, na praia ou em terreno baldio (12,78%), ocupação irregular de área pública (9,69%), mesas e cadeiras de restaurantes nas calçadas (8,57%), som alto de vizinhos (5,62%), ambulantes irregulares nas ruas e no transporte (5,48%), estacionamento irregular (5,2%), caixinhas de som alto nas praias (4,49%), latas de lixo e papeleiras vandalizadas (3,51%) e carros parados com som alto (2,11%). Na última segunda-feira, o prefeito Eduardo Paes propôs, para seu quarto mandato, que começa no ano que vem, atacar esses problemas com um “choque de civilidade”.
Além da sinalização urbana à vista de todos, as regras são claras: segundo o Código de Trânsito Brasileiro, o pedestre tem prioridade em várias situações, como ao atravessar na faixa, mesmo quando o semáforo abre para veículos. Motoristas que não respeitam essa preferência cometem infração gravíssima, com multa de R$ 191,54 e aplicação de 7 pontos na carteira.
Sobre o uso de ciclovias, ciclofaixas e faixas compartilhadas, a prefeitura informa que há parâmetros destinados a permitir a convivência entre ciclistas e pedestres. É permitido, por exemplo, correr nesses espaços, desde que o praticante permaneça nas bordas e não haja sinalização proibitiva. Em locais onde a prática é vedada, a penalidade prevista varia de R$ 282,97 a R$ 565,94, conforme o Regulamento Nº 11 do Código de Posturas (Decreto Nº 29881 de 18/9/2008).
Além disso, o trânsito de pedestres que não estejam se exercitando é proibido em ciclovias e ciclofaixas, exceto nas faixas de travessia. Também é vedado o tráfego ou estacionamento de veículos de vendedores ambulantes, carrinhos de bebê ou cadeiras de rodas empurradas por terceiros. A multa para infrações dessa natureza é de R$ 282,97, conforme o Código de Posturas. As bicicletas elétricas podem circular nesses espaços, desde que atendam a critérios definidos pelo Contran, mas a presença de motocicletas é terminantemente vetada.
No Túnel Novo, em Botafogo, Zona Sul do Rio, a relação entre ciclistas e pedestres é conflituosa. Muitos ciclistas ignoram placas e utilizam o espaço exclusivo para pedestres, enquanto outros trafegam na contramão das pistas. Um entregador, que preferiu não se identificar, confessou:
— Eu sei que é errado, mas não tem o que fazer. Preciso chegar rápido, e as pessoas já acham normal.
Raphael Pazos, fundador da Comissão de Segurança no Ciclismo do RJ, destaca que o problema não está nos equipamentos, mas na imprudência.
— A bicicleta não é mais um brinquedo. É um meio de transporte e trabalho. O vilão não é a bicicleta ou o patinete, mas a falta de prudência de quem os conduz. Se cada um entendesse o lado do outro, muita coisa poderia mudar. Não é só sobre regras, é sobre respeito e convivência.
Para Armando de Souza, especialista em legislação de trânsito, é essencial que os órgãos responsáveis atuem de forma integrada.
— A demora em fiscalizar e punir infrações permite que o desrespeito cresça. O objetivo do Código de Trânsito é a proteção da vida, mas sem vontade política e educação no trânsito, não haverá mudança. Enquanto isso, pedestres, motoristas e ciclistas seguem dividindo o espaço, muitas vezes de forma insegura, enquanto esperam por mudanças que parecem ainda distantes.
Atalho pela passarela
Na movimentada Avenida Brasil, um problema crônico é o tráfego de motocicletas nas passarelas destinadas exclusivamente a pedestres.
— A gente sobe na passarela para evitar os carros, mas temos que nos preocupar com as motos. Já vi até mãe com carrinho de bebê quase sendo atropelada — conta Antônio Carlos, morador de Cordovil que utiliza a passarela de Guadalupe, na Zona Norte para ir ao shopping.
Maria das Graças, moradora de Ramos, explica que evita usar as passarelas à noite:
— Fico com medo, porque as motos passam em alta velocidade, e, se a gente reclamar, tem motoqueiro que ainda responde com grosseria. Por isso às vezes eu prefiro atravessar a pista mesmo. Ninguém respeita nada — diz ela.
O choque de civilidade é mesmo urgente.
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